Olhando para a população da
periferia de São Paulo, podemos notar que a pobreza e a miséria estão estampadas
na cara de grande parte da população brasileira e podem ser vistas nitidamente
de várias formas. Pode ser notada pelas roupas que veste, pela quantidade de
dentes que tem na boca ou pelo lugar onde mora.
Aqui abordaremos uma dessas
caras, a pobreza e a luta do povo pobre para superá-la.
No início dos anos oitenta,
a cidade de São Paulo atingia o máximo de seu crescimento desordenado que vinha
de um processo migratório interno havia gerado um verdadeiro caos urbano.
Funda em 1554 por um grupo
de aproximadamente cem pessoas a cidade teve um crescimento lento nos primeiros
trezentos anos, assim é que em 1870 São Paulo contava com apenas 31.835 pessoas,
a partir daí experimentou um crescimento vertiginoso de forma que em 1970 já
contava com de 6 milhões de pessoas e continuou crescendo, em 1980 contava-se
quase de 9 milhões de habitantes e hoje já ultrapassou em muito a casa dos 11
milhões. A mancha urbana que compõe a região metropolitana de São
Paulo conta hoje com mais de 20 milhões de habitantes.
Esse crescimento pode ser
explicado por várias razões, mas pelo menos quatro delas podem ser tomadas como
as principais:
a)
- Sua localização geográfica que se situa no
entroncamento para o porto de Santos, por onde escoava toda a produção das
fazendas cafeeira e de cana de açúcar. O Porto de Santos ainda hoje é a
principal porta de saída dos produtos brasileiros, assim como a entrada das
mercadorias que o Brasil importa.
b)
– A libertação dos escravos no Brasil que
ocorreu em 13 de maio de 1888, que forçou os fazendeiros a substituir a mão de
obra escrava por colonos estrangeiros, principalmente europeus, os italianos,
os espanhóis e alemães e também os Japoneses que se fixaram majoritariamente no
Estado de São Paulo.
c)
– A interrupção das importações de
mercadorias, principalmente da Europa em razão das duas grandes guerras
mundiais, em 1918 e 1945, fez com que se desenvolvesse firmemente a
industrialização do Brasil, principalmente na cidade de São Paulo. Nos anos 50
a instalação da indústria automobilística, Ford, Chevrolet e Wolkz Wagen, na
região conhecida como ABC, na periferia da Grande São Paulo.
d)
– A construção civil foi e é outra matriz de
produção que ao longo do tempo funcionou como força de atração de migração
interna, principalmente dos nordestinos que para cá vieram para trabalhar
e buscar melhores condições de vida e
desenvolvimento pessoal e familiar.
Durante muitas décadas todos
os dias chegavam a São Paulo dezenas de milhares de pessoas vindas de todas as
partes do país e do mundo e aqui fixavam residências, provocando um
extraordinário crescimento desordenado da cidade, multiplicando as favelas e
gerando um caótico zoneamento urbano resultado de loteamentos clandestinos que
evidentemente não obedeciam qualquer legislação quanto ao traçado urbano
deixando enormes contingentes populacionais vivendo em condições subumanas em
bairros sem um mínimo de infra-estrutura, como pavimentação das ruas,
saneamento básico, sem coleta de lixo, sem eletricidade.
Nasce o mutirão:
No ano de 1983, Dom Angélico
Sândalo Bernardino bispo do bairro de São Miguel Paulista, periferia leste de
São Paulo e um dos maiores expoentes a Teologia da Libertação, decidiu por a
Igreja em firme ação de apoio às famílias moradoras nas favelas da região. Num
retiro reuniu os agentes das pastorais de Defesa dos Direitos Humanos e da Pastoral
da Periferia e propôs-lhes a criação de um grande movimento reivindicatório de
moradias dignas para todos os moradores das favelas ou toda moradia que pudesse
ser considerada subnormal, fez circular
nas Missas dominicais que a Igreja estaria dando início a um movimento que
visava pressionar o governo para criar uma política pública de moradia popular
que fosse digna do ser humano e contemplasse as camadas mais pobres da
população, em apenas um fim de semana, nos finais das missas foram inscritas
mais três mil famílias.
Começou então um ciclo de
reuniões, onde os interessados recebiam orientação e esclarecimentos sobre os
direitos naturais, e ganhavam consciência crítica sobre os programas
governamentais, visto que não atendiam as famílias de mais baixa renda, aquelas
situadas na faixa abaixo dos três salários mínimos.
O passo seguinte foi colocar
os próprios interessados para identificar os vazios urbanos da região que pudessem
comportar a construção de conjuntos habitacionais populares. Findo esse
processo, que durou seis meses, foi marcado um grande encontro com o então
Prefeito Mário Covas, onde o Dom Angélico em memorável sermão que falava da
“Terra Prometida”, apresentou ao prefeito a gente sem terra e a terra sem gente
à ocupá-la e propôs a criação de um amplo programa de habitação popular. O
prefeito assumiu o compromisso e teve assim início o movimento popular de
moradia na cidade de São Paulo.
A experiência se multiplicou
e logo outras igrejas e grupos políticos entraram no processo reivindicatório
que ficou conhecido como a luta pela moradia. Hoje existe na Grande São Paulo,
um grande número de associações e movimentos que atuam na organização das
famílias para a construção da casa própria, que é o principal sonho do povo
brasileiro.
Merece destaque nesse
processo de incorporação nas lutas por moradia popular o papel da Igreja
Católica Apostólica Brasileira que na pessoa do bispo Dom Geraldo Albano de
Freitas, também ligado à Teologia da Libertação, articulou e fundou o Movimento
Terra de Deus, Terra de Todos, que é hoje uma das principais forças na luta pela
reforma urbana em São Paulo.
Diante das reivindicações
dos movimentos, o governo freqüentemente afirmava não ter recursos financeiros
para tanto, foi então que os movimentos propuseram o sistema de mutirão: O
governo providencia a terra e a infra-estrutura, arruamento, água e esgoto, luz
além do material de construção e assessoria técnica, e as famílias constroem em
sistema de ajuda mútua as próprias casas. O prefeito Mário Covas concordou e
tiveram então inícios os primeiros conjuntos. Esta experiência foi abandonada
pelo prefeito seguinte, Jânio Quadros e retomada em 1989, pela prefeita Luiza
Erundina, então eleita pelo PT (Partido dos Trabalhadores), que iniciou Por
esse sistema a construção de dez mil casas, mas infelizmente terminou seu
governo sem concluir nenhum desses conjuntos e a experiência foi novamente
abandonada pelos prefeitos seguintes.
Com a eleição de Mario Covas
para o governo do Estado de São Paulo em 1994 o mutirão ganhou status de
política pública no Programa Paulista de Mutirão e Autogestão, criado pela lei
estadual nº 1942/95 e que destina anualmente recursos orçamentários para o
programa.
O mutirão conta com uma
assessoria técnica em pelo menos nas áreas: contábil e administração, jurídica,
engenharia e arquitetura e ainda em Serviço Social. Esta assessoria técnica é
escolhida e contratada pela associação e está prevista no convênio para
garantir a qualidade das construções.
Inicialmente construíam-se
apenas casinhas, hoje os mutirões constroem edifício de até sete andares e já
construiu mais de 70 mil unidades habitacionais em todo o Estado
Assim, pode dizer-se que o
mutirão é um sistema onde os próprios moradores é que constroem as casas e
apartamento envolvendo toda a família nesse esforço coletivo e viabilizando a
casa própria pra as famílias de baixa renda, inclusive para aquelas que ganham
menos de um salário mínimo.
Por esse sistema o Estado
celebra convênios com as associações e movimentos populares, através do qual o
governo repassa os recursos financeiros diretamente às associações que
administram a construção em todas as suas fazes, que vão da escolha do terreno
à entrega final dos apartamentos prontos para morar.
Não
há uma força hegemônica
Diferentemente da luta pela
reforma agrária que no Brasil tem uma força hegemônica, o MST (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra). Na cidade não há uma força equivalente, existem
sim, pelo menos dez grupos conhecidos como federações de associações que atuam
fortemente e são muito representativos, cada um com sua peculiaridade política
e ideológica, dentre eles está o Movimento Terra de Deus Terra de Todos que tem
uma ligação histórica com a Igreja Católica Apostólica Brasileira - ICAB.
Os vários movimentos, apesar
das diferenças, conseguem se unir para reivindicar e apresentar projetos de
políticas públicas para o setor; foi nesse processo que nasceu o Programa
Paulista de Mutirão e Auto – Gestão do governo do Estado de São Paulo em 1994,
época do governo social democrata de Mario Covas, e que já construiu mais de 70
mil casas já mencionados.
A experiência tem mostrado
que o custo das moradias construídas em sistema de mutirão fica entre sessenta
a setenta por cento do das construtoras, e a qualidade é muito superior. No
mutirão o papel da mulher é fundamental, pois as pessoas que se envolvem e
perseveram nesse projeto são em sua maioria mulheres, muitas vezes os homens
têm dificuldades de acreditar na força da ação coletiva ou não se dispõem a
trabalhar todos os fins de semana durante dois ou três anos, tempo que
normalmente dura a construção dos empreendimentos.
A
força da mulher
A presença da mulher é clara
e preponderante em todas as áreas do mutirão, desde a administração, assessoria
técnica, aos trabalhos menos prováveis, como eletricista, encanador, pedreiro,
mestre de obras e outros.
Antes de iniciar o trabalho
de construção propriamente dito, os mutirantes se reúnem em assembleia para
elaborar discutir e aprovar um documento chamado “Regulamento de Obras” que
contem as normas de segurança e qualidade do empreendimento e as regras de
convivência e desenvolvimento de todo o processo.
Pelo regulamento cada
família participante do mutirão deve dar pelo menos 16 horas de trabalho por
semana que podem ser executadas por qualquer membro maior da família que vá
residir no imóvel construído pelo mutirão. No mutirão há a possibilidade de
todos trabalharem, mesmo os deficientes físicos e os idosos que desempenham
atividades adequadas às suas forças e habilidades, aqueles que não conseguem
desempenhar as atividades próprias da construção civil, como as de pedreiro,
ajudante, encanador, eletricista e outras, atuam na distribuição de água nas
frentes de trabalho, cozinha comunitária, apontamentos, porteiros ou como
recepcionista.
O regulamento também prevê
algumas comissões como a de compras, a de prestação de contas, a de prevenção
de acidentes e outras que podem se formadas para o melhor andamento dos trabalhos
e convivência.
Os casos de descumprimentos
do regulamento implicam aplicação de penalidades que vão de uma simples
advertência à própria exclusão da família participante, dependendo da gravidade
da falta cometida.
Democracia
e aprendizado
Todas as decisões
importantes, absolutamente todas, são tomadas em assembleia depois de
exaustivos processos de discussão. A assembleia discute e decide tudo, da
escolha da cor dos prédios, à prestação mensal de contas à aplicação de
penalidades.
Essa forma de participação é
importante porque as pessoas sentem que estão elas próprias resolvendo seus
problemas e não apenas recebendo um favor do governo. Ao final do processo, a
casa tem sabor de conquista e não de dádiva, o mutirante é agradecido aos
companheiros que ajudaram a construir sua moradia e não se sente em dívida ou
obrigação com algum político “bonzinho”, é o exercício da cidadania na prática.
Depois de dois ou três anos
de convivência, período que dura a construção, os mutirantes aprendem que tem
direitos, responsabilidades e obrigações para com a comunidade, e efetivamente
passam não só respeitá-los como exigi-los de si próprio e dos companheiros.
O
mutirão não é assistencialista
Um conjunto habitacional
construído em sistema de mutirão tem uma diferença básica de outros conjuntos
feitos por construtoras; no mutirão todos os moradores têm uma história comum
de pelo menos três a quatro anos, sonharam juntos, sofreram juntos e se alegram
juntos, isto garante maior solidariedade e coesão ao grupo.
A experiência mostra que a
administração de condomínios de conjuntos construídos em mutirão é mais tranquila e o índice de inadimplência e significativamente mais baixo, além de
facilitar o trabalho comunitário depois da ocupação, tanto com as famílias como
com as crianças e a juventude.
Outro ponto que comumente se
observa é que, não tendo mais aluguel a pagar logo a família muda de patamar
social, melhora seu padrão de vida.
O mutirão é um programa
social verdadeiramente emancipatório e que valoriza o que as pessoas têm de
melhor, não é absolutamente nada assistencialista. No mutirão, não há lugar
para a preguiça ou acomodação!
A população é chamada a tomar
parte efetiva na administração e não apenas a discutir o orçamento, a
autogestão coloca nas mãos das associações as decisões financeiras e
administrativas de todas as etapas da construção. Para se ter uma ideia de
grandeza, no ano de 1998 as associações administraram um total de 360 milhões
de reais, que à época correspondia a 360 milhões de dólares.
Os resultados são
absolutamente positivos em todos os pontos que se queira avaliar,
administrativa, financeira, política e socialmente falando.
Por: Rosalvo Salgueiro
Este texto foi publicado em
alemão como parte do livro:
Hunger nach Gerechtigkeit: Perspektiven zur
Überwindung der Armut
(FOME DE JUSTIÇA:
Perspectivas de Superação da Pobreza.)
352 páginas, heróis Verlag, Zurique 1011,
CHF39,80, ISBN 978-3-905748-09-3. www.helden.ch
http://www.amazon.de/B%C3%BCcher/s?ie=UTF8&field-author=Rosalvo%20Salgueiro&page=1&rh=n%3A186606%2Cp_27%3ARosalvo%20Salgueiro